2 de junho de 2009

Haja alguém que tenha falado verdade porra!

"A arte é uma forma de crítica, porque fazer arte é confessar que a vida ou não presta, ou não chega" Álvaro de Campos

Poema em linha recta - Álvaro de Campos

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil, Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita, Indesculpavelmente sujo, Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo, Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas, Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante, Que tenho sofrido enxovalhos e calado, Que quando não tenha calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu que tenho sido cómico às criadas do hotel, Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes, Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar, Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenha agachado, Para fora da possibilidade so soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas, Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
Toda a gente que eu conheço e fala comigo Nunca teve um acto ridículo, nunca sofreu enxovalho, Nunca foi senão príncipe; Todos eles príncipes na vida...
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana Que confessasse não um pecadp, não uma infâmia; Que contasse não uma violência, mas uma cobardia! Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos, Arre estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e erróneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado, Podem ter sido traídos, mas ridículos nunca! E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído, Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear? Eu, que tenho sido vil, literalmente vil, Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

1 comentário:

FlyHigh_Girl disse...

Admitir a nossa própria maldade e mesquinhez requer que saibamos (ou consigamos) viver com ela. Requer uma noção de identidade suficiente forte e maleável (é difícil juntar estes dois atributos). Isto para que a maldade seja parte de nós, sem atacar a nossa auto-estima ao ponto de não conseguirmos "funcionar".
Creio que só ganhamos essa capacidade gradualmente, num longo e por vezes penoso processo. É preciso é coragem !
Beijinho *